Durante os dias 14 e 15 de julho aconteceu, em Fortaleza a VI Cúpula dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), sob o tema “Crescimento Inclusivo: Soluções Sustentáveis”. A agenda da cúpula esteve marcada pelas definições e acordos finais referentes a dois instrumentos financeiros que selam a institucionalização do bloco: o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) e o Arranjo Contingente de Reservas. Participaram do encontro, a presidente Dilma Rousseff, o premiê indiano Narendra Modi e os presidentes Vladimir Putin, da Rússia; Xi Jinping, da China; e Jacob Zuma, da África do Sul
A criação de ambos instrumentos busca materializar as intenções de fortalecer uma ordem internacional multipolar, principalmente diante das dificuldades em emplacar uma reforma da governança econômica global e uma mudança na correlação de forças no plano internacional. O NBD deve iniciar-se com um capital de U$50 bilhões, captará recursos no mercado internacional e os reinvestirá em projetos de infraestrutura dos países da aliança e em outros países em desenvolvimento, cobrindo portanto uma demanda que não têm sido completamente atendida pelas organizações financeiras intergovernamentais.
Já o Arranjo Contingente de Reservas pretende funcionar como uma salvaguarda financeira e auxiliar em eventuais desequilíbrios nas balanças de pagamento dos países da aliança. Nas palavras do Embaixador Flavio Damico “é um FMI em miniatura do qual apenas cinco países fazem parte dele, os cinco que constituem o Brics” . Será disponibilizado conforme a necessidade e terá um capital de US$ 100 bilhões, dos quais a China se compromete com US$ 41 bilhões; Brasil, Rússia e Índia com US$ 18 bilhões cada; e a África do Sul com US$ 5 bilhões.
O objetivo desse texto é explorar, brevemente, questões relacionadas a atuação dos países BRICS como bloco, ao Novo Banco de Desenvolvimento, aos desafios de crescimento inclusivo e sustentável enfrentados pelos países e, finalmente, considerações sobre a participação da sociedade civil na construção desse processo.
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Os BRICS, a governança global e sua atuação como bloco
O surgimento do BRICS responde a um movimento mais amplo de proliferação de mecanismos multilaterais que buscam construir uma nova ordem multipolar e avançar frente às dificuldades relacionadas à reforma da governança econômica mundial. No contexto brasileiro, esse movimento ocorreu paralelamente ao fortalecimento de laços regionais e à diversificação de parceiros políticos do Brasil, como o IBAS em 2003 e a Cúpula América do Sul – África, em 2006.
Certamente, os BRICS são determinantes para a atual economia mundial. Rússia, Índia, China, Brasil e África do Sul juntos apresentam estatísticas relevantes: 40% da população do mundo (aproximadamente 3 bilhões de pessoas), 18% do Produto Interno Bruto Mundial, 30% do território mundial, e entre 2003 e 2007, o crescimento de Rússia, Índia, China, Brasil representou 65% da expansão do PIB mundial. Estima-se que em 2015 os BRICS serão responsáveis por um quarto do PIB mundial. Todos os países da aliança apresentam forte liderança regional, capacidade e vontade de incidir no sistema e instituições internacionais.
Hoje, a atuação do bloco se estrutura a partir de dois pilares.
O primeiro diz respeito à reforma dos mecanismos de governança global, principalmente nos fóruns de regulação financeira, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Os países do Bloco vêm articulando tentativas de reformar essas instituições sem sucesso durante os últimos anos. A proposta de reforma das cotas do FMI, acordada em 2010 durante a cúpula do G-20 em Seul e que até hoje não foi ratificada pelo congresso estadunidense é uma dessas iniciativas ainda sem frutos do bloco. Entretanto, o bloco não busca ruptura total com o sistema multilateral internacional, mas sim articulação e complementariedade, tal como anunciado na declaração de Fortaleza e Durban.
O segundo pilar se refere à cooperação intra-BRICS seja no setor financeiro, cristalizada no banco de desenvolvimento e no Arranjo Contingente ou em setores como a agricultura, ciência e tecnologia, saúde, comércio, segurança e energia. A aliança tende a avançar em linhas de menor resistência, já que as decisões são tomadas por consenso entre cinco países. Buscam construir a despeito de suas diferenças uma agenda comum e as possibilidades são construídas a partir das sinergias.
Complementariamente aos acordos entre os países BRICS, a busca por diversificação de fontes de financiamentos se concretiza também com a criação, por parte da China, do Banco de Investimento em Infraestrutura Asiático (AIIB, em inglês) com capital inicial de U$ 50 bilhões e a implementação da Global Infraestructure Facility do FMI, que estreará provavelmente como projeto piloto com ações ligadas aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Ainda, é importante destacar a crescente atuação dos países do bloco no continente africano. Nesse sentido, destacam-se o papel do Brasil e da China na Cooperação Sul-Sul e o crescimento do investimento estrangeiro direto proveniente dos países emergentes.
Emergem também desafios ao Brasil e demais países do bloco que buscam incidir como potências na governança global. Não é clara ainda uma agenda que combine capacidade de incidência com responsabilidade com questões globais como direitos humanos e meio ambiente, por exemplo.
Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS
O Novo Banco de Desenvolvimento consolida o papel dos BRICS como bloco econômico e se propõe uma alternativa de financiamento para projetos de países emergentes, que já não conseguem levantar capital junto aos mecanismos financiados por países desenvolvidos.
O NBD deve iniciar-se com um capital de U$50 bilhões (sendo autorizados até 100 bilhões), com aporte inicial dividido igualmente entre os cinco países, sendo que U$ 10 bilhões serão disponibilizados em efetivo e os restantes U$ 40 em garantias que serão utilizadas para levantar recursos nos mercados internacionais.
O NBD deve conceder empréstimos a custos menores do que os países captam no mercado e também emprestará, futuramente, para o setor privado. Além de conceder empréstimos NBD poderá atuar por meio de garantias e ter participação acionária em projetos públicos e privados. Inicialmente o NBD emprestará apenas para os países membros. Mas futuramente poderá financiar países não membros também. Além disso, no futuro, o banco estará aberto a adesões de qualquer país das Nações Unidas, seja como financiador ou pedindo empréstimos. O preço da ação custará U$ 100 mil. O Banco deverá ter seu funcionamento aprovado pelo Congresso dos cinco países e pode começar a financiar projetos em dois anos. Restará, ainda, definir a participação de outros países e outros bancos nacionais e regionais, assim como a relação com outros instrumentos de financiamento. Apesar dos rumores sobre a proposta de entrada da Argentina ou outros países na aliança, é certo que durante os dias subsequentes à cúpula haverão encontros entre os líderes sul-americanos e dos BRICS. Assim como aconteceu em Durban em 2013, a cúpula servirá para aproximar o bloco aos países da região.
Sua governança será composta de um Conselho de Ministros (Board of Governors) que tomará decisões estratégicas, como pode ser a entrada de novos países e novo aporte de recursos. O Conselho Administrativo (Board of Directors) terá diretores representando os acionistas do banco (os próprios governos) que não participarão da gestão diária, apenas supervisionarão as atividades da diretoria que, por sua vez, será composta por um presidente e 4 vice presidentes. A sede do Banco será em Xangai e a presidência, rotativa, será inicialmente Indiana. As próximas presidências deverão ser Brasil, Rússia, África do sul, China, respectivamente. O Brasil e Rússia exercerão a primeira presidência do Conselho de Administração e do Conselhos de Ministros, respectivamente.
A governança discutida não detalha possíveis espaços de incidência e participação da sociedade civil. Salvaguardas ou condicionalidades também são temas que não estão sob a mesa.. O cenário não é otimista se considerarmos a experiência dos bancos nacionais de desenvolvimento dos países BRICS, cujos padrões de transparência e cumprimento de salvaguardas socioambientais, em geral, não se adequam aos parâmetros estabelecidos pelos próprios bancos, por outras instituições financeiras multilaterais e/ou aos compromissos estabelecidos por acordos internacionais.
Outras dúvidas e preocupações que a criação do NBD suscita, dizem respeito a: o uso dos financiamentos para a expansão da internacionalização de grandes empresas e promoção de um modelo extrativista na África, a implementação dos projetos sem participação dos afetados e transparência, a atenção para diagnósticos de déficits de infraestrutura social e urbana nos próprios países do BRICS e a colaboração com o Plano de Desenvolvimento de Infraestrutura do continente africano (PIDA).
Durante atividade organizada conjuntamente entre a Rede Brasileira pela Integração dos Povos e Red Latinoamericana Sobre Deuda, Desarrollo y Derechos (Latindadd), questionou-se sobre se o NBD poderá representar uma alternativa real aos mecanismos de financiamento já existentes. Nesse sentido, indaga-se sobre qual a alternativa que se promove ao articular um mecanismo que espelha o sistema, captando capital no mercado financeiro, e operando com o dólar americano como unidade de conta? As definições de infraestrutura e desenvolvimento sustentável também foram apontadas como pontos de tensão na criação do NBD.
Infraestrutura e Desenvolvimento Sustentável e Inclusivo
O NBD surge para financiar projetos de infraestrutura e de desenvolvimento sustentável. O tipo de infraestrutura a ser financiado e o entendimento sobre o que é desenvolvimento sustentável são debates decisivos que definirão o caráter dos projetos financiados pelo Banco.
Algumas análises não creditam ao bloco a possibilidade de disputar um outro modelo de desenvolvimento, mais sustentável e inclusivo. Além de sua busca por maior inserção e incidência no atual sistema econômico, os cinco países dos BRICS são sociedades que ainda apresentam desafios no combate à desigualdade social e concentração de renda. Remoções de populações locais devido a grandes obras de infraestrutura e matrizes enérgicas baseadas no uso intensivo de recursos naturais (petróleo, gás natural e carvão) são alguns exemplos dos desafios a serem encarados pelo NBD ao promover infraestruturas baixo o lema de desenvolvimento sustentável.
Existe um grande déficit de infraestrutura social, nos países BRICS e em outros países em desenvolvimento. Entretanto, são também motivo de conflito os imensos impactos socioambientais das grandes obras de infraestrutura impuslionadas em nome do desenvolvimento. Nesse sentido, algumas perguntas que se impõem dizem respeito a: quem define o que é desenvolvimento sustentável? Essa definição incluirá as dimensões de inclusão e justiça social? Se os critérios para avaliação de projetos serão subordinada a estratégia politica do NBD, qual será ela? Como assegurar a dimensão de sustentabilidade e ao mesmo tempo não impor condicionalidades para os países financiados? Ou ainda, como garantir que princípios de sustentabilidade, sejam qual for, sejam respeitados pelos governos e empresas financiados? O NBD respeitará as comunidades afetadas pelos projetos? Incluirá a perspectiva de gênero e dos povos tradicionais? Será transparente e promoverá a participação da sociedade civil?
Sociedade civil
O engajamento de organizações e movimentos da sociedade civil nos processos relacionados ao bloco é, em geral, frágil. A opacidade das negociações e a falta de informações sobre os processos, que conta ainda com pouca cobertura midiática, contribui para fragilizar a possibilidade de engajamento. Além disso, dentro dos BRICS coexistem múltiplas situações no que diz respeito à sociedade civil. Enquanto Brasil, Índia e África do Sul contam movimentos fortes e participativos, o mesmo não acontece nos demais países.
Mesmo diante destas dificuldades, a sociedade civil dos países do bloco vêm se organizando para aprofundar o conhecimento sobre os processos e fortalecer os links de solidariedade e possíveis convergências em estratégias de resistências ligadas a agendas domésticas, que impactem a atuação de cada um dos países dentro do bloco, disputando o sentido dos debates, como no caso de desenvolvimento sustentável. Ainda, considera-se importante considerar e incluir no debate a voz e a visão dos países que estão sendo e serão afetados ou beneficiados pela atuação dos BRICS. É também tema de debate a possibilidade de criar um canal de diálogo institucional entre as organizações da sociedade civil dos cinco países e o bloco, assim como existe o fórum empresarial e o acadêmico. Nesse sentido, a expectativa é que o Brasil, devido a sua trajetória participativa, lidere essa agenda dentro do grupo. Vale ressaltar que o Fórum Acadêmico realizado no Rio de Janeiro, em março de 2014, ampliou a participação de organizações acadêmicas.
Assim como ocorreu em Durban, em 2013, paralelamente à cúpula oficial, a sociedade civil brasileira e internacional organizou uma série de atividades. Os “Diálogos sobre o desenvolvimento: os BRICS na perspectiva dos povos” e o III Fórum dos BRICS Sindical, reuniram movimentos sociais e organizações da sociedade civil dos cinco países para construir conhecimento acerca do modelo de desenvolvimento promovido pelos países do bloco, a atuação das transnacionais e direitos humanos, desigualdades socioambientais, os bancos de desenvolvimento nacionais, entre outros. Destaca-se, ainda, a grande participação dos movimentos de mulheres que organizaram o “Primeiro Fórum das mulheres dos BRICS”.
Para seguir o diálogo entre os povos foram elencados alguns temas transversais à sociedade civil dos cinco países: o Novo Banco de Desenvolvimento; empresas transnacionais e direitos humanos; participação; mineração e indústria extrativista; padrões de concentração de riqueza, propriedade e renda.
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