Saúde, Desenvolvimento e Cooperação Internacional: uma abordagem multidisciplinar

Autor: Maíra Fedatto Data de inserção: 28/04/2015

Partindo do entendimento que os desafios no campo da saúde não podem ser contidos nas fronteiras nacionais, é fundamental compreendê-los como problemas comuns que demandam esforços coletivos. Mais além, a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) defende a ideia de que sem populações saudáveis, o desenvolvimento não é sustentável. Neste sentido, faz-se imperativo a inserção da Saúde na agenda das Relações Internacionais. Propõe-se, assim, uma abordagem multidisciplinar, ou seja, aquela na qual o objeto de estudo é analisado por duas ou mais disciplinas, ou campos de estudo. No caso em tela, a multidisciplinaridade proposta se dará a partir do olhar das relações internacionais, teorias do desenvolvimento e saúde global.

Historicamente, o campo da Saúde foi delimitado por uma abordagem positivista na qual as doenças, apesar de serem consideradas uma ameaça à ordem e a estrutura social, eram tratadas essencialmente desde uma ótica biocêntrica. Contudo, a partir da década de 1980, intensamente influenciada pela atuação de movimentos sociais, iniciaram-se estudos que apontavam a produção social das doenças, no quais o adoecer era compreendido também através de condicionantes econômicos, históricos e sociais.

Concomitantemente, devido à estagnação do crescimento econômico e o aumento das desigualdades sociais, especialmente nos países periféricos que haviam adotado as reformas econômicas neoliberais[1], questionou-se o viés econômico predominante no conceito de desenvolvimento. Estudos sobre desenvolvimento que associavam política econômica a temas sociais trouxeram a baila esses questionamentos.

Neste sentido, Armatya Sen (2000) propõe o conceito de desenvolvimento como liberdade. Para o autor, o crescimento econômico é importante, entretanto, deve estar intrinsecamente relacionado aos benefícios que são alcançados durante o processo de crescimento, destacando-se ganhos em alfabetização, educação e saúde. Assim, o desenvolvimento como liberdade recoloca os indivíduos no centro das discussões sobre o tema que, durante algumas décadas, foi focado em conceitos puramente técnicos afastando as necessidades das populações do debate, bem como o empenhamento social em supri-las.

Observa-se, portanto, uma estreita relação entre Saúde e Desenvolvimento. A saúde é um elemento-chave para o desenvolvimento econômico sustentável (MATTA e MORENO, 2014), tendo em vista que as doenças sobrecarregam os sistemas de saúde pública, bem como afetam a disponibilidade da força de trabalho e produtividade de vários setores (ONU, 2015). Consequentemente, o governo arrecada menos e ao mesmo tempo tem um gasto maior no provimento de serviços de saúde para atender as pessoas acometidas por enfermidades. É inegável, portanto, o impacto social e econômico negativo de populações enfermas.

Neste sentido, a consolidação da saúde global seria uma estratégia de fortalecimento dos sistemas nacionais de saúde, elemento central para o desenvolvimento do sistema global de saúde, bem como uma estratégia fundamental para o cumprimento dos Objetivos do Milêniorelacionados à saúde[2]. Entretanto, um conceito definitivo permanece em disputa entre os diversos atores e instituições que defendem seu uso acadêmico e político, apresentando definições atreladas às novas necessidades de saúde no mundo, bem como ao entendimento de que essas necessidades e soluções constituem um desafio comum a todos os países (MATTA e MORENO, 2014).

Nesta direção, Koplan et al. (1993) argumentam que um consensual conceito de saúde global seria indispensável para o estabelecimento de uma agenda compartilhada e objetivos definidos, tanto no campo acadêmico como na prática institucional. Esses autores sugerem o entendimento da saúde global como “uma área para estudo, pesquisa e prática que prioriza a melhoria da saúde e o alcance da equidade em saúde para todas as pessoas no mundo”.

Mais além, diante de um grande avanço tecnológico, especialmente na área da medicina com a descoberta de novas substâncias e tratamentos, muitas populações carentes situadas em países pobres ou em desenvolvimento não se beneficiaram destes avanços (CASTRO, 2012). Percebe-se, portanto, que os progressos tecnológicos não contribuíram para a superação das disparidades existentes tanto entre os países do Norte e do Sul quanto no âmbito doméstico de cada um deles. Consequentemente, autores da área da saúde como Buss (2010) e Almeida (2010), apontam que, diante deste cenário, diversas iniciativas internacionais – inclusive de atores não estatais - começaram a tracejar uma luta contra o estado crítico da saúde das populações.

Faz-se essencial lembrar ainda que os países de renda baixa e média possuem limitações críticas de governança, além de baixa capacidade de formular e implementar políticas públicas de saúde que sejam eficazes para suas populações. Em regra, seus sistemas de saúde são frágeis, fragmentados, sub-financiados e faltam neles os recursos tecnológicos básicos para oferecer assistência à saúde e medidas de saúde pública adequadas às necessidades da população (Buss, 2010). Mais além, os profissionais da área não obstante serem escassos, pouco capacitados e remunerados, ainda migram para os países em desenvolvimento. Diante deste cenário, os países mais pobres acabam extremamente dependentes da ajuda internacional.

Assim, seguindo a lógica da Cooperação Internacional, o setor da saúde é foco de ações de cooperação tanto verticais (Norte-Sul) quanto horizontais (Sul-Sul).  Entretanto, as condições declinantes da saúde de grandes parcelas da população em diversos países do mundo (WHO, 2009a) gerou um grande debate global sobre a eficácia das ajudas internacionais na área, sobretudo as verticais. As cooperações verticais vinculam-se a doenças específicas, resultando em pequeno impacto nos sistemas de saúde. É possível relacionar este debate no âmbito das discussões acerca da preferência pela cooperação sul-sul, que compreende não apenas uma ajuda unidirecional, mas a construção de parcerias, intercâmbio de experiências, aprendizado conjunto e compartilhamento de resultados e responsabilidades.

De fato, com a emergência de desafios de saúde para além das fronteiras nacionais, as resoluções devem ser buscadas de forma conjunta, tendo em vista que as questões de saúde estão excedendo o âmbito técnico e se tornando essencial nas políticas externa e de segurança, assim como nos acordos comerciais. Com efeito, o papel do Brasil neste contexto é que sua política externa tem buscado caracterizar o acesso a medicamentos essenciais como uma questão de direitos humanos, com vistas a aumentar seu peso político na agenda internacional e minar os obstáculos representados pelos interesses comerciais e pelos direitos de propriedade intelectual dos Estados Unidos e de outros países industrializados. (SOUZA, 2011)

Podemos concluir ressaltando que a interdependência global de problemas, de determinantes e de soluções para as questões de saúde resultou no caráter multiprofissional e multidisciplinar da área. Observa-se uma mudança da ênfase dada ao enfrentamento de doenças e suas consequências, com uma maior compreensão de que uma visão estritamente biológica não é, necessariamente, caminho mais adequado para a resolução de muitos problemas globais (FORTES, 2014). Faz-se urgente e necessário o fortalecimento dos sistemas nacionais de saúde, bem como a ampla incorporação, nos programas de cooperação em saúde, dos determinantes sociais da saúde e de ações inter-setoriais. Nesse sentido, a Saúde Global é reconhecida como um campo de conhecimentos e práticas que demanda ampliação do diálogo entre o setor saúde e as relações internacionais, bem como de temas como os conceitos de cooperação e desenvolvimento.

 

[1] As quatro estratégias concretas da implantação da política neoliberal são o corte dos gastos sociais, a privatização, a centralização dos gastos sociais públicos em programas seletivos contra a pobreza e a descentralização (Laurell, 1997, p. 167).

[2] Os Objetivos do Milênio (ODM) relativos à saúde são: 1) Reduzir a mortalidade infantil; 2)Melhorar a saúde das gestantes; 3)Combater a AIDS, a Malária e outras doenças. Disponível em: http://www.objetivosdomilenio.org.br/

 

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Célia. A concepção brasileira de “cooperação Sul-Sul estruturante em saúde”. Disponível em: www.reciis.cict.fiocruz.br. Revista Eletrônica de Comunicado, Informação e Inovação em Saúde,vol.4, n.1,pp. 25-35. Rio de Janeiro, 2010.

BUSS, Paulo. Ensaio Crítico sobre a Cooperação Internacional em Saúde. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde, v.4, n.1, p.93-105. Rio de Janeiro, 2010.

CASTRO, José Flávio de. A relação entre patentes farmacêuticas, doenças negligenciadas e o programa público brasileiro de produção e distribuição de medicamentos. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia – UNESP. Araraquara, 2012

FORTE, Paulo Antônio de Carvalho. Saúde Global em tempos de globalização. In: Saúde e Sociedade. vol.23 no.2 São Paulo, 2014.

KOPLAN, J.P. et al. Towards a common definition of global health. Lancet, v.373, n. 9679, 2009.

LAURELL, Asa Cristina. Avançando em direção ao passado: a política social do neoliberalismo. In: ______. (Org.). Estado e políticas sociais no neoliberalismo. Tradução de R. L. Contrera. São Paulo: Cortez, 1997. p. 150-178.

MATTA, Gustavo Corrêa; MORENO, Arlinda Barbosa. Saúde global: uma análise sobre as relações entre os processos de globalização e o uso dos indicadores de saúde. Interface (Botucatu) vol.18 no.48 Botucatu  2014

SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

SOUZA, André Mello e. O Acordo sobre os aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionado ao comércio (TRIPS): implicações e possibilidades para a Saúde Pública no Brasil. IPEA, 1615 Texto para Discussão. Brasília, 2011.